Os transtornos do neurodesenvolvimento, notavelmente o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), representam desafios crescentes para a saúde pública global. No Brasil, um avanço histórico para a quantificação desta população ocorreu com o Censo Demográfico de 2022, que, de forma inédita, investigou o diagnóstico de autismo. Segundo os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país possui 2,4 milhões de pessoas com diagnóstico de TEA, o que corresponde a 1,2% da população. Para o TDAH, estudos de revisão sistemática no Brasil indicam uma prevalência que varia entre 5% a 8% da população pediátrica, alinhando o país com as estatísticas mundiais e sublinhando a magnitude clínica destes transtornos.
Diante desse cenário, emerge um corpo robusto de estudos clínicos que correlacionam a severidade sintomatológica com disfunções metabólicas sistêmicas. Pesquisas de vanguarda, publicadas em periódicos de altíssimo impacto como The Lancet Neurology, JAMA Psychiatry e Molecular Psychiatry, têm consistentemente demonstrado a presença de biomarcadores de estresse oxidativo elevado e uma capacidade antioxidante reduzida neste perfil populacional. Adicionalmente, revisões sistemáticas na Nature Reviews Neuroscience consolidam as evidências sobre a disfunção mitocondrial e a neuroinflamação crônica como fatores etiopatogênicos centrais. Tais achados sugerem que, para um subgrupo significativo de pacientes, os déficits neurocognitivos e comportamentais não são apenas uma manifestação de circuitos neuronais atípicos, mas também o reflexo de um desequilíbrio bioquímico subjacente que impacta diretamente a função do sistema nervoso central.
É neste ponto que a nutrigenética se torna um campo de estudo indispensável, funcionando como uma ponte entre a bioquímica, a genética e a nutrição clínica. Esta ciência investiga precisamente como as variações genéticas individuais, herdadas por cada paciente, ditam a sua resposta ao que comem. Ela vai além da ideia de que uma caloria é apenas uma caloria, ou que um nutriente tem o mesmo efeito em todos. Em essência, a nutrigenética decodifica o diálogo molecular entre os genes e os compostos bioativos dos alimentos, explicando por que um indivíduo pode precisar de mais colina para a saúde cerebral, enquanto outro necessita de um suporte maior de antioxidantes.
Para os transtornos do neurodesenvolvimento, essa abordagem é particularmente revolucionária. O cérebro é o órgão com a mais alta demanda metabólica do corpo, e seu funcionamento depende de uma orquestra de reações bioquímicas perfeitamente afinadas. A nutrigenética permite identificar onde, na planta baixa genética do paciente, existem “gargalos” e ineficiências nessas vias. Em vez de seguir recomendações nutricionais genéricas, o profissional passa a ter um mapa para identificar vulnerabilidades específicas – como uma dificuldade inata para ativar a vitamina B9 ou para controlar a neuroinflamação – e, assim, desenhar uma intervenção com nutrientes-chave para apoiar ou “desviar” desses pontos fracos, personalizando o cuidado de uma forma que antes era impossível.
O pilar desta ciência reside no conceito de polimorfismo genético, mais especificamente nos Polimorfismos de Nucleotídeo Único (SNPs). Longe de serem “defeitos” ou “mutações”, os SNPs são variações comuns na sequência de DNA que ocorrem em mais de 1% da população – pense neles como diferentes “grafias” de uma mesma palavra no nosso código genético. Um SNP pode, por exemplo, alterar a instrução para a construção de uma enzima, tornando-a menos eficiente. Um exemplo clássico é o gene MTHFR: um SNP comum neste gene resulta em uma enzima que funciona com até 70% menos capacidade, o que prejudica a ativação da vitamina B9 (folato) e aumenta drasticamente a necessidade biológica deste nutriente para manter a saúde neurológica.
Com essa base, estamos prontos para ir além. Nos próximos tópicos, vamos mergulhar nos mecanismos bioquímicos que conectam a nutrição ao cérebro no TEA e TDAH, explorar a fascinante comunicação do eixo intestino-cérebro e, o mais importante, traduzir toda essa ciência em uma abordagem clínica prática e aplicável à sua realidade clínica.
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No cerne da disfunção neurobiológica, a via metabólica mais implicada é o ciclo da metilação. Essencial para a doação de grupos metil (CH₃), este processo é o maestro de funções críticas, regulando desde a expressão epigenética até a síntese de compostos vitais como a creatina e a fosfatidilcolina. Polimorfismos em genes-chave como MTHFR, MTR, MTRR e CBS, altamente prevalentes nesta população, comprometem a produção de S-adenosilmetionina (SAMe), o doador de metil universal, resultando em uma capacidade de metilação sistemicamente reduzida, com profundas repercussões no sistema nervoso em desenvolvimento.
Na prática, essa falha metabólica desencadeia uma cascata de disfunções interligadas. A produção deficiente de SAMe resulta em uma síntese subótima de neurotransmissores como dopamina, serotonina e melatonina, explicando bioquimicamente os déficits de atenção, a instabilidade do humor e os distúrbios do sono. Ao mesmo tempo, a via da transulfuração é prejudicada, diminuindo drasticamente a produção de glutationa (GSH), o principal antioxidante endógeno do cérebro. Esta vulnerabilidade deixa os neurônios expostos ao bombardeio de espécies reativas de oxigênio, um estado de estresse oxidativo crônico que danifica as mitocôndrias e perpetua um ciclo de neuroinflamação.
A integridade de todo esse maquinário bioquímico, no entanto, depende criticamente de cofatores nutricionais. A insuficiência desses nutrientes agrava drasticamente o impacto dos polimorfismos genéticos. A Metilcobalamina (B12) e o Metilfolato (B9) são os principais doadores de grupos metil. O Piridoxal-5-Fosfato (B6) é o cofator que direciona a homocisteína para a produção de glutationa. Minerais como o Magnésio e o Zinco são os catalisadores universais para centenas de reações. A falta de qualquer uma dessas peças cria um gargalo metabólico, intensificando o ciclo vicioso de disfunção neurológica.
Para além desses cofatores diretos, outros nutrientes são igualmente vitais por atuarem em frentes complementares. Os ácidos graxos Ômega 3 (EPA e DHA) são fundamentais para a estrutura das membranas neuronais e para a produção de mediadores que ativamente resolvem a neuroinflamação. O Ferro é um cofator limitante na produção de dopamina, e sua deficiência está diretamente ligada à fadiga e desatenção. Finalmente, a Vitamina D, atuando como um hormônio neuro esteróide, modula a expressão de genes ligados a fatores de crescimento neuronal e regula a produção da própria glutationa, fechando o ciclo de proteção antioxidante.
A conexão metabólica se torna ainda mais crítica quando analisamos o eixo intestino-cérebro, um sofisticado sistema de comunicação bidirecional que não apenas modula, mas ajuda a esculpir o neurodesenvolvimento. Essa comunicação ocorre através de vias bem definidas: a via neural, principalmente através do nervo vago; a via imune, através de citocinas circulantes; e a via endócrina, pela qual metabólitos bacterianos influenciam os hormônios. Em indivíduos com TEA e TDAH, a disbiose intestinal – um desequilíbrio na microbiota – é um achado recorrente, frequentemente exacerbado por dietas seletivas e pobres em fibras.
Este desequilíbrio tem uma consequência estrutural direta: o comprometimento da barreira intestinal. A disbiose pode levar à degradação das proteínas de junção apertada (como a zonulina e a ocludina), que funcionam como o “cimento” entre as células da parede intestinal. O resultado é um aumento da permeabilidade, permitindo que componentes bacterianos pró-inflamatórios, notavelmente os lipopolissacarídeos (LPS), escapem para a circulação sistêmica, estabelecendo um estado de inflamação crônica de baixo grau.
Uma vez na corrente sanguínea, o LPS atua como um potente sinal de alarme para o sistema imune e pode atravessar uma barreira hematoencefálica fragilizada, ativando a micróglia, as células imunes do SNC. A ativação microglial crônica sustenta um ciclo vicioso de neuroinflamação, liberando citocinas que interferem na neurotransmissão e na plasticidade neuronal – processos fundamentais para a aprendizagem e o comportamento.
Além de exportar sinais inflamatórios, a disbiose também significa a perda de sinais benéficos. Uma microbiota saudável produz metabólitos vitais como os ácidos graxos de cadeia curta (SCFAs), principalmente o butirato, que fortalece a barreira intestinal e exerce efeitos epigenéticos no cérebro. A microbiota também é essencial no metabolismo do triptofano, o precursor da serotonina, impactando diretamente os níveis deste neurotransmissor fundamental para a regulação do humor e da ansiedade.
A aplicação clínica deste conhecimento, seja em consultório presencial ou via teleconsulta, representa o núcleo da prática do nutricionista funcional. A intervenção se inicia com uma anamnese aprofundada, que transcende o recordatório alimentar para se tornar uma investigação da biologia integrativa do paciente, mapeando interconexões sintomáticas através de ferramentas como questionários de rastreamento metabólico, a Escala de Bristol e a análise do perfil sensorial alimentar.
Com base nas hipóteses clínicas, a solicitação ou interpretação de exames bioquímicos se torna uma ferramenta de validação. Um painel essencial, focado nos exames mais acessíveis e de alto impacto, geralmente inclui: marcadores do metabolismo e inflamação (Homocisteína, PCR-us) e o status de vitaminas e minerais-chave (Ferritina, Zinco plasmático, Magnésio eritrocitário, Cobre, Vitamina D, B12 e Folato).
A expertise do nutricionista se destaca na interpretação destes exames para além das faixas de referência, trabalhando com faixas ótimas que refletem uma fisiologia resiliente. Essa análise refinada culmina na principal ferramenta do nutricionista e na verdadeira transformação da abordagem clínica: a prescrição dietética e a suplementação de precisão. Dessa forma, o plano alimentar torna-se a fundação terapêutica, desenhada para ir além da contagem de calorias e macronutrientes. O foco é construir um terreno biológico resistente, aumentando a densidade de nutrientes-chave com comida de verdade, modulando a microbiota intestinal com uma rica variedade de alimentos prebióticos e fontes de polifenóis, e controlando ativamente a neuroinflamação com fontes limpas de proteína e gorduras saudáveis.
Adicionalmente, a suplementação entra como uma estratégia precisa com o objetivo de corrigir deficiências, mas ativamente apoiar e otimizar as vias metabólicas ineficientes como cofatores em suas formas bioativas. Essa integração da bioquímica com a ciência dos alimentos eleva a prática nutricional, transformando-a em uma intervenção fundamental e proativa na modulação da saúde neurocognitiva.
A abordagem contemporânea da neurodivergência, particularmente no Transtorno do Espectro Autista (TEA) e no Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), propõe uma fundamental mudança de paradigma: a transição de um modelo baseado em déficit para o conceito de neurodiversidade. Sob esta ótica, o cérebro neurodivergente não é interpretado como um sistema com falhas a serem corrigidas, mas como o resultado de trajetórias de desenvolvimento neuronal atípicas. Essas trajetórias resultam em uma conectividade funcional distinta, que, por um lado, pode originar potencialidades cognitivas singulares, mas, por outro, pode apresentar um conjunto específico de vulnerabilidades. A literatura científica robusta demonstra que muitas dessas vulnerabilidades não são primariamente estruturais, mas sim funcionais. Elas residem em uma homeostase bioquímica individual que, devido a polimorfismos genéticos e fatores epigenéticos, apresenta maior suscetibilidade à neuroinflamação, ao estresse oxidativo e a gargalos em vias metabólicas essenciais para a plasticidade sináptica.
É precisamente nesta intersecção que o papel do nutricionista clínico se revela fundamental e transformador. Atuando de forma presencial ou por teleconsulta, ele transcende a posição de mero coadjuvante para se tornar um decodificador da biologia individual do paciente. Utilizando a anamnese funcional como mapa e os exames bioquímicos como bússola, o nutricionista aplica os princípios da nutrigenética não apenas para “manejar sintomas”, mas para construir resiliência a partir do nível celular. A prescrição de precisão de nutrientes e compostos bioativos torna-se, então, a ferramenta estratégica para silenciar a neuroinflamação, otimizar a produção de energia mitocondrial e fortalecer o eixo intestino-cérebro.
Em última análise, nutrir o cérebro neurodivergente é um ato de empoderamento: é fornecer a base biológica para que a mente atípica possa expressar todo o seu potencial.
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